O papel do setor privado no combate à crise climática

Descarbonizar a economia significa pensar as estruturas e relações de produção de uma forma diferente da que temos hoje, sobretudo para a Amazônia.

Junia Nogueira de SáJunia Nogueira de Sá, presidente do Conselho Deliberativo do WWF-Brasil. (Foto: Divulgação) 

Cientistas de todo o planeta, em especial aqueles reunidos no Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima das Nações Unidas, em outras instâncias da ONU e em organizações da sociedade civil, como o WWF-Brasil, alertam há décadas sobre a urgência de uma ação rápida e robusta para evitar um caminho sem volta: as piores consequências da emergência climática. Esse alerta remonta à Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano de 1972 e o trabalho nessa direção teve início há mais de 30 anos, na Rio92, quando foi criada a Convenção do Clima da ONU. De lá para cá, tivemos avanços inequívocos, como o Acordo de Paris - atualmente, o único mecanismo de alcance global para o enfrentamento das causas e das consequências das mudanças climáticas. Embora ainda estejamos a caminho de uma temperatura média global 2,7°C acima dos níveis pré-industriais em 2100, sem ele chegaríamos a 4°C ou 5°C no final deste século.

Em 2024, tivemos um menu-degustação do que significa um mundo 1,5°C mais quente - número que, no Acordo de Paris, aparece como meta a não ser ultrapassada. A conta em vidas humanas e prejuízos financeiros é significativa: estudo comissionado pela Câmara Internacional de Comércio constatou perdas econômicas de US$ 2 trilhões causadas por cerca de 4.000 eventos climáticos extremos em seis continentes entre 2014 e 2023. Vale ressaltar que esse número dá uma noção apenas parcial do impacto do clima sobre a economia, uma vez que não inclui todos os eventos climáticos do período estudado.

O mercado financeiro, como não podia deixar de ser, contabiliza o efeito do clima sobre seus negócios. Investidores estão cada vez mais atentos aos riscos climáticos, negando crédito a desmatadores, poluidores e empreendimentos com alto potencial de impactos negativos. O setor de seguros, que já sofreu perdas superiores a US$ 100 bilhões, agora analisa com lupa o custo dos eventos extremos ao precificar suas apólices. Para estes e inúmeros outros segmentos, a sobrevivência e o sucesso dependerão da capacidade de antecipação às mudanças engendradas tanto por um clima que já mudou, como pelo enfrentamento às causas dessa crise.

A última Conferência do Clima, realizada em 2024 em Baku, no Azerbaijão, ressaltou o papel do setor privado, citado textualmente no documento final da negociação como um dos atores a serem envolvidos na mobilização financeira necessária para a ação climática. Ainda há um longo caminho para entender como o setor privado poderá contribuir, já que simplesmente transferir as atuais práticas do sistema financeiro resultará inevitavelmente em uma explosão na dívida dos países menos desenvolvidos e mais vulneráveis, as principais vítimas e os menos responsáveis pelo caos climático. Atores privados de outros segmentos enfrentam desafio semelhante: não repetir fórmulas convencionais.

O setor energético é um bom exemplo. Ele engloba a produção e consumo de eletricidade e de combustíveis e, em vários países, as fontes fósseis têm papel predominante, com sistemas de fornecimento e distribuição centralizados e de capital intensivo. A transição necessária para a descarbonização irá inevitavelmente mudar esse paradigma. No caso da eletricidade, fontes como energia solar podem vir tanto de grandes fazendas como da microgeração, na qual o consumidor pode também ser fornecedor. No caso da eólica, onde há intercorrência dos ventos, é preciso conexão com fontes mais estáveis, além de conjugar sistemas de armazenamento de energia e reforçar os sistemas de transmissão. Importante destacar que, em todos os casos, deve-se considerar a necessidade de aperfeiçoamento do processo de implantação de parques eólicos, evitando impactos sociais às populações locais.

Já em transportes, cuja dependência do petróleo é mais generalizada, a indústria automotiva e o setor de distribuição de combustíveis são vetores extremamente potentes. No primeiro caso, por sua capacidade de desenvolver e oferecer ao mercado modelos elétricos e híbridos a preços competitivos; no segundo, ao agregar pontos de recarga em seus estabelecimentos. O setor imobiliário também tem um importante papel na adaptação das novas edificações para uma frota elétrica – e para sistemas elétricos mais eficientes. Quando falamos em adaptação de centros urbanos à mudança do clima, o papel deste segmento cresce em importância, dada a profusão de novas soluções que precisam ser incorporadas às nossas cidades (telhados verdes, jardins de chuva e placas solares, entre outros).

A iniciativa privada também precisa da parceria do poder público. No caso do transporte de pessoas, por exemplo, nada pode ser feito sem o apoio dos estados e prefeituras para que as empresas de ônibus consigam eletrificar suas frotas – algo que exige um fornecimento robusto de energia para as garagens onde os veículos são recarregados. Neste caso, o investimento público mais que compensa, já que a poluição do ar é uma das principais causas de despesas com saúde pública em centros urbanos.

Ou seja, descarbonizar a economia significa pensar as estruturas e relações de produção de uma forma diferente da que temos hoje. Isso vale sobretudo para a Amazônia, cuja ocupação tem sido guiada pelos mesmos paradigmas que nortearam os colonizadores europeus: o desmatamento irrestrito e sem critérios para a implantação de atividades econômicas vindas de fora. No caso do Cerrado, que conviveu bem com consórcios de agricultura e pecuária durante séculos, o avanço das monoculturas temporárias das últimas décadas resultou na supressão de metade da vegetação nativa do bioma, colocando em risco a fonte de oito das doze maiores bacias hidrográficas do país. Os diferentes agentes da cadeia de sistemas alimentares precisarão se voltar a outras frentes para ampliação da produção, como a recuperação de terras degradadas e a intensificação da produtividade pecuária, por exemplo.

Insistir em valorizar mais a terra desmatada do que a floresta é um contrassenso econômico e ambiental quando falamos do restante do Cerrado que ainda resiste e da Amazônia, que pode chegar em breve a um ponto de não-retorno. É preciso reconhecer que o desenvolvimento da metade sul do país, tal como feito até agora, só foi possível graças aos serviços ecossistêmicos providos pela floresta amazônica em termos de regularidade e previsibilidade pluviométrica e climática. Até mesmo o desenvolvimento da região, com inclusão social, é mais eficiente com a floresta em pé – incluindo seus frutos, madeiras e ativos biológicos ainda pouco conhecidos. E mais uma vez precisamos mudar a chave. Não há uma solução única para a preservação da Amazônia, embora todas elas passem pelo mesmo caminho: o fim do desmatamento.

Da mesma forma, não há uma solução única para a crise climática. A viabilidade do nosso futuro como humanidade é feita de uma miríade de ações e de atores, incluindo necessária e fundamentalmente o setor privado, que tem capacidade e velocidade como nenhum outro para as mudanças e transformações necessárias. Uma coisa é certa: quem sair na frente terá uma vantagem competitiva nas próximas décadas, quando o mundo precisará atingir o carbono zero líquido (net-zero). Mas a certeza de sucesso só existe se todos fizerem sua parte. No ano em que, pela primeira vez, os negociadores climáticos reunidos na COP30 não trabalharão sobre a construção de um acordo, mas sim sobre sua implementação, o setor privado tem a chance de assumir um papel histórico: fazer da ação climática, ela sim, um caminho sem volta.