'A saúde define entre existir ou não existir', diz Lorice Scalise, presidente da Roche Farma Brasil
Executiva fala sobre o maior acordo da farmacêutica na área da obesidade, o papel do Brasil na operação global da empresa, os desafios da inovação e a importância de descentralizar o cuidado em saúde.
Executiva fala sobre o maior acordo da farmacêutica na área da obesidade, o papel do Brasil na operação global da empresa, os desafios da inovação e a importância de descentralizar o cuidado em saúde. (Foto: Divulgação)
Aos 25 anos de carreira na Roche, Lorice Scalise é a primeira mulher a comandar a operação brasileira da farmacêutica suíça, presente no país há nove décadas. Em entrevista ao programa Show Business, ela detalha os rumos da empresa, os investimentos em pesquisa clínica, a entrada definitiva no mercado de medicamentos contra a obesidade, além de refletir sobre os desafios do sistema de saúde no Brasil, o papel da inteligência artificial e sua trajetória pessoal como mãe, líder e apaixonada pelo setor da saúde.
Como vai funcionar a parceria firmada pela Roche com a dinamarquesa Zilent, considerada o maior acordo já feito para um remédio contra a obesidade?
Estamos muito felizes com essa parceria. Ela é estratégica para o tratamento da obesidade, que tem um enorme impacto social. A Roche já vinha desenvolvendo outros produtos nessa área, e agora fortalecemos e ampliamos nosso portfólio com essa aliança. É uma entrada definitiva nesse segmento tão relevante.
E qual é o peso do Brasil nos negócios globais da Roche?
O Brasil ocupa hoje a oitava posição entre os mais de 150 países onde a Roche atua. Reportamos diretamente à matriz, o que mostra a importância da nossa operação globalmente.
Quantos colaboradores vocês têm no país atualmente?
Na farmacêutica, somos 450. Se somarmos com a área de pesquisa clínica, chegamos a aproximadamente 600 colaboradores.
Por que a Roche decidiu fechar sua fábrica no Brasil?
O phase-out da fábrica foi concluído no fim do ano passado, após cinco anos. Como trabalhamos com medicamentos inovadores e de nicho, não compensa produzir em pequena escala localmente. Mas isso não significa sair do país: investimos fortemente em pesquisa clínica. Em 2023, foram R$ 610 milhões investidos nessa área, mais de 10% do nosso faturamento de R$ 4,6 bilhões no ano.
Qual é a atuação da Roche na formação de cientistas e no fortalecimento da ciência nacional?
Fomos a empresa que mais realizou estudos clínicos no Brasil no último ano – mais de 100. Isso envolve centros, cientistas e profissionais em diferentes áreas como oncologia, doenças neurodegenerativas, oftalmologia e doenças raras. Isso gera capacitação e contribui para a ciência local.
Qual é o foco da Roche no Brasil hoje?
Continuamos fortes em oncologia, mas temos presença crescente em doenças neurodegenerativas, raras, hematológicas e oftalmologia.
O que impulsionou o crescimento da Roche no Brasil em 2023?
Produtos de inovação. Crescemos 38% nessa linha. Medicamentos que mudam o diálogo médico com o paciente, oferecendo alternativas antes inexistentes. Além disso, a inovação também está em novas formas de administração, como quimioterapias que antes levavam horas e hoje podem ser feitas em minutos.
A inteligência artificial já está presente na operação da Roche?
Totalmente. Desde o desenvolvimento de moléculas até estudos clínicos. Usamos IA no dia a dia, inclusive para resumir e-mails e ajudar nas respostas. Ela traz mais eficiência, rapidez e conhecimento para o nosso trabalho.
Você acredita que a IA vai transformar radicalmente a saúde?
Sim, mas ainda estamos no começo. A saúde é um setor altamente regulado. Acredito que o dia em que os dados de saúde forem integrados e acessíveis de forma segura, ganharemos uma eficiência incrível no sistema.
Como você enxerga o sistema de saúde brasileiro?
É heterogêneo e atravessado por ineficiências de outras áreas como educação, saneamento e transporte. A saúde acaba pagando a conta. Ainda há pouca política voltada à prevenção e ao bem-estar. O SUS, por outro lado, é fascinante como conceito: descentralizado e com capilaridade. Falta conectividade de dados para integrá-lo e torná-lo mais eficiente.
A Roche tem atuado em centros fora do eixo Sul-Sudeste?
Sim. Em parceria com o Instituto Vencer o Câncer, abrimos mais de 20 centros no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Investimos em capacitação, infraestrutura e, o mais importante, levamos produtos de inovação a pacientes que não teriam acesso.
Você é a primeira mulher a presidir a Roche no Brasil. Como é ocupar esse cargo?
É um orgulho e também um peso. Quando uma mulher ocupa um cargo tradicionalmente masculino, todos esperam que ela atue como seus antecessores. O desafio é criar novos arquétipos. Eu tenho consciência de que minha presença aqui também é fruto de políticas de diversidade e cotas, que abriram espaço para perfis diferentes.
Como você vê as novas gerações no mercado de trabalho?
Admiro muito. Eles têm clareza, propósitos fortes e querem conexão entre valores pessoais e trabalho. O desafio das empresas é ouvir genuinamente e criar modelos que se adaptem às novas expectativas.
E o modelo de trabalho na Roche?
Adotamos três dias presenciais por semana e dois dias de flexibilidade. Em janeiro e julho, oferecemos trabalho remoto total. Valorizamos o aprendizado entre pares e os “acidentes de aprendizagem”, aqueles insights que surgem de conversas casuais.
Quanto tempo leva para desenvolver um medicamento?
De 10 a 15 anos. E de cada 10 moléculas, apenas uma chega ao mercado. É um processo longo, caro e altamente técnico.
O que está por vir no portfólio da Roche?
Novidades em oftalmologia, hemofilia (com terapia gênica), e medicamentos para obesidade. Estamos focados em melhorar a aderência dos pacientes com tratamentos menos invasivos e mais eficazes.
É difícil inovar no Brasil?
Não diria que é difícil, mas enfrentamos barreiras, principalmente burocráticas. A inovação precisa ser vista com um olhar mais amplo, que considere impacto social, produtividade e até o papel dos cuidadores.
Como foi sua experiência liderando a operação da Roche na Argentina?
Os sistemas de saúde são parecidos, mas a crise econômica afeta tudo. Cheguei lá com 1 dólar valendo 16 pesos e saí com 1 dólar valendo 1.600 pesos. Isso compromete o orçamento de saúde drasticamente.
Você se considera uma vendedora até hoje?
Com certeza. Eu vejo o papel do vendedor como alguém que aproxima uma necessidade de uma solução. Isso continua sendo o que eu faço todos os dias.
Como você define o momento atual da saúde e da ciência?
Estamos em uma evolução constante. As soluções existem, o que falta são decisões. O entrave está menos na ciência e mais na vontade política e institucional.