Por causa da mulher
A chef Janaína Rueda celebra, ao lado de Jefferson Rueda, o sétimo lugar no mundo para A Casa do Porco, restaurante que tornou mais feminino e passou a comandar.
Janaína Rueda, inventando um lugar feminino de destaque para A Casa do Porco.
Quem visita o número 124 da rua Araújo, no centro da capital paulista, pode se deparar com os olhos brilhantes de Janaína Rueda, típicos de seu entusiasmo em viver. A chef é a cara do talento. E a pele de felino não aparece tatuada em seu braço esquerdo à toa. Dona Onça é o apelido que lhe deu o chef Jefferson Rueda quando namoravam. Ela usava roupas com estampas de oncinha, além de sua garra parecer inegável. Uma mulher, uma beleza que aconteceu ao estabelecimento sob seu comando, o Dona Onça, na mesma região da cidade. Mas não só. A Casa do Porco, um restaurante antes tão identificado com Jefferson, mas pertencente aos dois, agora exibe seu print definitivo. É Janaína quem comanda o espaço, premiado em julho como o sétimo melhor restaurante do mundo pelo celebrado ranking The World’s 50 Best Restaurants 2022.
A chef tem muito a comemorar. Para além do prêmio internacional, sua revolução ao criar um núcleo feminino no coração do estabelecimento, iniciada há três anos, vingou. “Interessante este prêmio chegar justo no momento em que eu venho trabalhando dentro da cozinha da Casa do Porco. Eu assino a direção e a criação do nosso menu-degustação”, diz ela, sobre o restaurante aberto em 2015. “E hoje somos mais de dez mulheres na linha de frente. Cinco são líderes. As mulheres fazem um trabalho incrível na gastronomia, mas não têm o destaque merecido.”
Foi um processo natural, conta Jefferson. O chef já havia feito isto, estar à frente da cozinha, como ele diz, a vida inteira. Um dia, Janaína manifestou-lhe o desejo de comandar aquela equipe e não houve resistência. “Ela estava com muita afinidade com as meninas que trabalham lá, disse que tinha algumas ideias e que gostaria de fazer o menu. Fui achando legal e falei: ‘Bora! Vamos fazer assim’. Aí rolou. Por que não? Eu ajudo em tudo lá dentro, mas deixei a Janaína criar e imprimir a assinatura dela. Isso é parceria também. A gente se ajuda em tudo. Eu dou palpites no Dona Onça. O importante é ela manifestar o que acha, pensa, para a Casa do Porco. E eu, da mesma forma, faço isso no Dona Onça. E está tudo certo, porque é tudo nosso.”
O sushi de papada de porco.
Janaína nasceu há 44 anos em um cortiço do Brás, bairro central da capital paulista. A pobreza da família à época a fez abandonar a escola aos 13 anos. Ainda que cursasse a sétima série com boas notas, enveredou pelo comércio, atividade que experimentou pela primeira vez como vendedora em uma loja de sapatos. Educada na escola da rua e do samba (diz ter sido criada na quadrada carnavalesca Vai-Vai), Janaína preferia o contato com pessoas aos bancos de colégio, onde não encontrava margem para contestações.
Um de seus sonhos, na adolescência, era vestir roupas de marcas jovens. Sem renda para comprá-las, trabalhou em lojas que faziam a cabeça da juventude da época, como Triton e Pakalolo. Vendeu muitas peças e inflou seu guarda-roupa com outras. À época, sua mãe era relações-públicas de boates paulistanas como Gallery e Hippopotamus. Conhecia políticos e artistas e recebia em casa intelectuais e empresários ao mesmo tempo que alugava quartos para as garotas da noite. E cozinhava. E gostava de vinho, ramo de atividade que sua filha viria a experimentar por sete anos como consultora da Pernod Ricard.
Janaína dava expediente – fazia vatapá e galinhada – em uma barraca na Praça da República, quando conheceu Jefferson, já cozinheiro em um restaurante no Itaim. A parceria rendeu frutos: um casamento, os filhos João e Joaquim, hoje adolescentes, a inauguração do Bar da Dona Onça, A Casa do Porco e outros dois empreendimentos, o Hot Pork e a Sorveteria do Centro. Desde então, os negócios da dupla só prosperam. Atualmente, os dois discutem o conceito do novo cardápio de primavera-verão da Casa do Porco, a ser finalizado em outubro. E moram em casas separadas.
Jefferson está mais presente hoje na horta e na criação dos porcos, cerca de 1.300 cabeças, em São José do Rio Pardo, no interior paulista. O que servirá ao novo menu precisa ser plantado agora. “E eu tenho de estar presente para alinhar tudo”, ressalta. “Quando permaneço mais dias no sítio eu planto com as outras pessoas. É uma terapia mexer na terra, aguar as hortas.” O que é colhido vai para São Paulo duas ou três vezes por semana, em um processo sob a coordenação do chef, que controla a rotatividade de produtos consumidos para determinar o que tem de ser produzido na horta. “Só eu consigo dar esse feedback para as pessoas que trabalham na terra.”
Ele fica no interior de quarta até segunda-feira. São dois sítios em São José do Rio Pardo. Em um deles são criados os porcos e no outro plantam-se as verduras e os legumes orgânicos usados nos restaurantes. Jefferson lembra que Janaína sempre esteve presente em todas as etapas de trabalho na Casa do Porco.
A cozinha da Casa do Porco, que ganha mais participação de mulheres.
“É bom escutar a opinião e contar com a visão de outras pessoas. A coisa fica mais sensata dessa forma. Muitas decisões eram tomadas apenas por mim.” Ele só tem elogios para a chef. “A Janaína é autodidata, desenrolada, perspicaz na maneira de pensar, criar e colocar em prática. Enxerga as coisas muito facilmente, sabe bem o que está fazendo na Casa do Porco, como coordenar uma cozinha e equipe. É uma cozinheira preparada para aquilo que faz.” O chef vê na inquietude a marca de Janaína. “Ela sabe quando alterar algo na receita. Tem olhos de lince. Sua busca incessante é batalhar para que as coisas saiam com perfeição.” Jefferson se considera criativo na cozinha. Para ele, Janaína, além de inventiva, é rápida, enxerga adiante e incentiva a equipe. E mais: como já trabalhou no ramo de bebidas, é ela quem assina também o menu-degustação de drinques e vinhos da Casa do Porco.”
A seguir, Janaína Rueda narra a emoção que sentiu ao conhecer a nova posição do restaurante no ranking internacional e adificuldade de reconhecimento por ser mulher em uma área profissional dominada por homens.
Que reação você teve quando A Casa do Porco foi anunciada como o sétimo melhor restaurante do mundo?
Eu já chorava antes, quando acontecia o anúncio dos restaurantes e suas colocações na lista. As minhas mãos suavam enquanto outros eram anunciados e o nosso, não. Quando faltavam as dez posições finais, me deu dor de barriga, vontade de fazer xixi e mais choradeira. Ficamos na sétima posição, um posto incrível. Ainda assim, não quero me deixar levar por um número, uma colocação. Se futuramente a gente estiver entre os cinquenta melhores do mundo, irei comemorar do mesmo jeito. Porque é sobre estar lá, sobre representação e não sobre competir. Viver pautado em competição faz a gente perder a essência. A roda é gigante e ela sobe, desce e segue girando. São pouco mais de mil jurados espalhados pelo mundo para avaliar as iguarias dos restaurantes sem que a gente saiba. Ou seja, não há como ter controle.
O que aponta esse prêmio?
Essa conquista é sobre a gente – e quando digo a gente, me refiro ao Brasil, cada vez mais reconhecido mundialmente. Para que as pessoas venham ao nosso país também porque há aqui seis, sete, restaurantes que adorariam conhecer. Muita gente vai ao Peru, por exemplo, porque sabe que lá experimentará de uma vez só uma gama de conceituados restaurantes. A gastronomia brasileira é múltipla, cheia de afeto, sabor, e devemos falar dela no plural. Temos aqui uma seleção brasileira de gastronomia e não apenas a de futebol.
Vocês citaram nominalmente outros restaurantes brasileiros depois da divulgação do prêmio internacional. Por quê?
Ninguém vem ao Brasil para comer apenas na Casa do Porco, concorda? Temos aqui uma expertise nesse ramo de conhecimento cujo valor econômico é gigante. Nominar outros estabelecimentos é, portanto, dizer às pessoas: venham ao meu país para desfrutar de ótimos restaurantes. Temos de levar o turista para conhecer boteco, pagode, mas ele não deve ir apenas a um único restaurante fine dining de alta gastronomia. Pelo contrário. Ele precisa conhecer no mínimo quatro para entender e elogiar a gastronomia brasileira.Eu tenho dois filhos que querem ser cozinheiros. E tenho, portanto, de pensar no futuro do Brasil com um turismo gigantesco. Os meus restaurantes têm de estar lotados daqui a 50 anos ou mais, para que a família perdure e o nosso legado continue. Não posso pensar a curto prazo.
Há quanto tempo você é chef?
Há 16 anos.
É verdade que se especializou depois de conhecer o Jefferson?
Sim. Eu abri o Bar da Dona Onça em 2008 e ele me auxiliou durante três meses nas divisões de trabalho e na montagem de cozinha, algo que eu nunca havia feito.
Vocês são donos de quatro estabelecimentos. Muita gente, porém, associa o seu nome ao Dona Onça enquanto A Casa do Porco é tida como restaurante do Jefferson. Por que a mudança?
É interessante este prêmio chegar justo no momento em que eu venho trabalhando muito dentro da cozinha da Casa do Porco. Este último menu é muito meu. A criação e a direção dele são minhas. E tudo se deu em comum acordo com o Jefferson no sentido de implantar um momento feminino na Casa do Porco. Isso está sendo muito bacana. Há cinco anos venho trabalhando muito naquela cozinha. Mas não era reconhecida como a cozinheira da Casa do Porco, como mulher, enfim. E me causava estranheza não ser citada, reconhecida. De três anos para cá, então, adentrei a cozinha, em comum acordo com o Jefferson, para termos um prisma feminino dentro da Casa do Porco.
Você responde ainda pela administração do restaurante?
Não mais. A minha irmã cuida dessa área e também da jurídica. O irmão do Jefferson é gerente de operações. E atualmente eu lidero todos os grupos da empresa. Eu me inteiro de tudo, mas não sou centralizadora. Cozinho pelo mundo afora, atualmente. Somente este ano, já tenho mais de dez viagens internacionais agendadas e não sei quantas outras pelo Brasil. Não consigo mais ficar dentro da cozinha e do escritório ao mesmo tempo. Temos os nossos olheiros, como o Júlio, que é o meu sócio, filho do meu padrinho, que fica a par de tudo. E contamos com um consultor financeiro, o Newton Guedes, que está ao nosso lado já há 20 anos e nos fez crescer muito como empresários. Até pouco tempo atrás, imagina, eu ia na rua 25 de Março comprar embalagens! E o Newton me dizia o quanto poderia ser gasto com cada uma das coisas. Hoje, todo final de mês, ocorre auditoria em todas as nossas empresas.
Você se sente na vitrine do restaurante?
Atualmente assino a direção e criação do nosso menu-degustação (Da Roça para o Centro). Há ainda outras mulheres que lideram. Juntas olhamos o todo e chegamos ao resultado final. É como roteiro de filme. Cada um desempenha o seu papel. Delego muitas funções no trabalho. Sempre fui assim.
Ascender a alguns postos tradicionalmente ocupados por homens não é um processo tranquilo na maioria das vezes. Como se deu o seu?
Seis anos atrás, eu estive com o Jefferson na Colômbia para a premiação do 50 Best Restaurants da América Latina. Chamaram mulheres cozinheiras para um evento e eu fui a única a não ser convidada. Procurei a direção do evento para saber por quê. A resposta foi: “A gente não sabia que você era cozinheira, porque quem sempre aparece é o Jefferson”. Aquilo me feriu. Comecei a me questionar: o que estou fazendo comigo? Eu estava vivendo demais à sombra do Jefferson. Desde aquele choque, mudei e fui me posicionando. O Jefferson passou a entender os meus movimentos e tudo aconteceu de maneira orgânica, natural.
Quantas mulheres estão na linha de frente da cozinha da Casa do Porco?
Mais de dez. Cinco delas são lideranças. E o design do cardápio também foi assinado por uma mulher. Eu quis que, no desenho, constasse Iemanjá, rainhas e outras referências ao movimento feminino. Hoje as mulheres fazem um trabalho incrível na gastronomia e não ganham destaque. Mais de 300 cozinheiras brasileiras têm seus restaurantes ou chefiam cozinhas, mas não são mencionadas no país. Se eu pedir para citar 50 brasileiras que ocupam postos de chef é capaz de a grande maioria não responder. As mulheres, quando têm voz, discursam dando crédito a produtores e promovem ações sociais. A mulher tem útero, quer cuidar, transbordar essa energia para o mundo, quer se doar. As cozinhas com mulheres à frente são mais generosas. Obviamente, há homens generosos. Por meio do nosso trabalho queremos que os homens enxerguem que estamos aqui para somar, fortalecer. Entre as mulheres já está claro que se a gente não se unir continuaremos massacradas. Tássia Magalhães, Manoela Ferraz e Bruna Martins falam sobre isso nas redes sociais.
Cite uma grande mudança na culinária brasileira.
Há cada vez mais homens engajados nas questões feministas. Muitos ainda se assustam, não querem falar sobre isso. Em encontros com chefs jovens fora do Brasil percebo, enquanto mulher, ser mais bem acolhida por eles. O chef Claude Troisgros me disse, certa vez, que estará ao nosso lado quando necessário. Esse diálogo é importante entre nós cozinheiros, mulheres e homens. O feminismo é dócil e não agressivo. Porque, do contrário, ele é rebatido com agressão.
Você pode dividir uma história pitoresca vivida na Casa do Porco?
O Ai Weiwei (artista plástico chinês) comeu marmita na calçada do restaurante. Um cliente me enviou uma foto com a mensagem: “Olha quem está comendo marmita da Casa do Porco, de pé, na calçada!”. E eu que sou fã do Ai Weiwei não estava lá! Ele gostou tanto da marmita que pediu para o curador Marcello Dantas levá-lo novamente ao restaurante. Reservamos a mesa do chef, que fica na cozinha, para ele se sentir à vontade. Depois, convidamos o Ai Weiwei e sua família para comer feijoada na minha casa. Houve também um pessoal da Comic-Con que me telefonou sem se identificar pedindo a mesa do chef, por ser exclusiva. Os meus filhos foram à Comic-Con encontrar o Homem-Aranha e o amigo japonês do super-herói. Enquanto isso, chegam dois meninos para a mesa reservada. No final, uma das pessoas na comitiva diz: esse aqui interpreta o Homem-Aranha no filme e esse outro, o amigo do super-herói. E pergunta se a gente quer uma foto com eles. Fiz as fotos e postei. Meus filhos viram a postagem e me acusaram de ter escondido a informação de que o Homem-Aranha iria ao restaurante deles (risos).
O chef Ferran Adrià incentivou você e Jefferson a inaugurarem um restaurante só com pratos suínos?
A história é a seguinte. Na Virada Cultural, em 2013, assamos oito porcos em uma barraca montada em frente à minha casa, na avenida São Luís. Logo depois, o jornalista Luiz Américo Camargo, de O Estado de S. Paulo, disse que a gente deveria abrir um estabelecimento só com aquele porco. Mais ou menos um ano depois, estávamos no estúdio do fotógrafo Sérgio Coimbra, que me convidou a fazer a comida do Dona Onça, nossa feijoada, para o Ferran Adrià. Mas eu queria fazer o porco assado brasileiro para ele, que é espanhol. Há muito porco na Espanha, porém gostaria que ele conhecesse o brasileiro. O Jefferson e eu fomos assar juntos o porco no estúdio do Sérgio Coimbra. O Ferran Adrià comeu a cabeça do porco. Na sequência, pediu uma pausa para homenagear os cozinheiros e disse: “Eu sou da terra do porco e nunca comi nada igual. Deveria haver uma casa com esse porco assado aqui no Brasil. Vocês serão um sucesso no mundo”. A gente não havia pensado nisso. O Jefferson, que foi açougueiro, queria ter um açougue com carne de porco. Eu fui contra e disse para a gente abrir um restaurante chamado A Casa do Porco. E servir só porco porque é a especialidade dele. Assim passamos a esmerilhar na cozinha caipira junto com a carne de porco e a cozinha brasileira. As três coisas mais geniais da gastronomia de São Paulo e do mundo foram inventadas pelo Jefferson. A gente faz o sushi de papada de porco, o tartar
e a panceta e as pessoas ficam loucas.