Fernando Fontes: “Mesmo com macroeconomia desfavorável, evolução do registro de recebíveis pode abrir janela para o crédito”

Hoje a Cerc representa 80% do mercado de credenciadoras – CIP, TAG e B3 também atuam no segmento – e reúne nomes como PagSeguro, PayPal, Mercado Pago e aplicativos como Uber.

Poder ao pequeno e médio varejista - Digital Money InformeFernando Fontes, diretor-presidente da Cerc (Foto: Divulgação)

 

Se as perspectivas de uma Selic mais alta por mais tempo e de PIB fraco são um sinal negativo para o mercado de crédito adiante, a evolução da regulação que centraliza o registro de recebíveis, aumentando a segurança de seu uso em operações de crédito, deve abrir ampliar os canais em termos de acesso. A avaliação é de Fernando Fontes, diretor-presidente da Cerc, especializada nesse tipo de registro. Com o impulso do novo sistema para recebíveis de cartão de crédito, que completou um ano em junho, a empresa movimentou de R$ 650 bilhões. Hoje a Cerc representa 80% do mercado de credenciadoras – CIP, TAG e B3 também atuam no segmento – e reúne nomes como PagSeguro, PayPal, Mercado Pago e aplicativos como Uber. Fernando Fontes, diretor-presidente da empresa, falou com a Conjuntura Econômica sobre as perspectivas para o mercado de crédito brasileiro – capa da edição de julho da revista. A seguir, o Blog adianta parte dessa conversa:  

Do ponto de vista do negócio da Cerc, de recebíveis, como avaliam a tendência para o mercado de crédito no Brasil?

A Cerc foi constituída no começo de 2016 para ser a primeira entidade de registro autorizada pelo BCB especializada em recebíveis de crédito. Registradora é algo que existe no Brasil há muito tempo. A primeira foi a Cetip, que nasceu no final dos anos 1980, por iniciativa do próprio Banco Central para registrar títulos dos bancos como CDBs e operação com derivativos. A Cerc, por sua vez, não é uma registradora focada apenas nos instrumentos que nascem no mercado financeiro, mas de outros ativos que nascem na economia real, que são criados na relação entre duas empresas não-financeiras, ou pessoas e empresas não-financeiras, que de alguma forma possa ser utilizado para acessar crédito, mercado de capitais. 

Temos um levantamento que indica que o mercado de recebíveis movimenta por volta de R$ 13 trilhões por ano em todos os segmentos. A regra do compre agora e pague depois é parte da cultura do brasileiro. Do cheque pré-datado ao crediário, foram muitos os instrumentos que o Brasil inventou e que acabou inspirando muita mudança mundo afora. Além de ser abundante, recebível é estratégico, principalmente para as pequenas empresas que precisam dele e não têm garantia para dar, mas tem contas a receber que podem ser usadas para conseguir capital de giro, financiar sua atividade. Há um movimento fly to quality nos bancos, de reduzir risco, e a única forma do pequeno se financiar é com garantia. Caso contrário, terá dificuldades. Por isso, estamos apostando que, independentemente da condição econômica, haverá crescimento de determinadas linhas de crédito em função dos mecanismos que o registro pode proporcionar. 

Como foi a evolução dos negócios durante a pandemia?

Nosso trabalho aumentou muito em função dos novos marcos regulatórios que o BC estabeleceu. Começamos a operar em setembro de 2018, e nesses quase quatro anos acumulamos mais de 800 clientes corporativos. No agronegócio (em que os recebíveis foram impulsionados recentemente pela MP 1104, que amplia o papel das Cédulas do Produtor Rural – CPRs), são tradings, revendas, cooperativas de produção, indústrias químicas. No caso de cartões, trabalhamos com todas as empresas de maquininhas, grandes market places como Mercado Livre, Magalu, Amazon, D2W (Americanas), mais a parte dos aplicativos como Ifood e Uber. Além de muitos financiadores: bancos, fintechs, fundos de investimento que compram recebíveis – os chamados Fdics –, que estão aprimorando sua capacidade de usar esse novo colateral que é o recebível para ampliar a oferta de crédito principalmente para o pequeno e médio empreendedor.

Contratamos muita gente. A empresa cresceu quase dez vezes durante a pandemia em função da evolução do registro de tantos ativos. E porque estamos, de fato, criando mercados em lugares onde havia um ambiente desorganizado, que dificultava até o desenvolvimento de novos negócios, novos modelos. Agora, atuamos com uma infraestrutura em cima da qual vem se edificando uma série de novas iniciativas. Por exemplo, há ao menos quatro fintechs explorando o uso de recebíveis de cartões para pagamento de fornecedor. São negócios que não existiam antes do registro centralizado, e hoje já tem investidores relevantes aportando recursos nessas iniciativas que surgem quando você cria um mercado. 

Ainda não temos sentido correlação com o ambiente macroeconômico. Claro que se o PIB crescer menos o uso de recebíveis será menor. Mas ainda estamos falando de um mercado que há pouco não existia, não havia precedente. Então, no momento, nosso negócio se relaciona sobretudo com a agenda regulatória do governo. Enquanto tivermos esse BC fazedor, será positivo.

E não vejo qualquer linha de governo que venha a vencer as eleições que não seja apoiadora das microrreformas que melhoram a capacidade da sociedade de se financiar. O presidente Bolsonaro tem apoiado essa agenda. O ex-presidente Lula foi quem trouxe o consignado para o Brasil, em 2002, que mudou a realidade do crédito pessoal no Brasil em tamanho, em custo e em prazo. Hoje temos um consignado que proporciona acesso a condições muito mais favoráveis, e que pode melhorar muito ainda, especialmente no segmento privado, onde há ainda muita dificuldade de implementação.  

Quanto à perspectiva de juros altos por mais tempo e menos crescimento adiante? 

Não estamos otimistas quanto ao cenário econômico. Teremos que enfrentar taxas de juros altas fora do Brasil pressionando as taxas do Brasil para cima o crédito como um todo estruturalmente subindo de preço pela taxa básica e pelo aumento do spread. Se olhar números do BC, os spreads de crédito para PJ subiram 40% nos últimos 12 meses. Isso diante de um quadro social de patente aumento do empobrecimento da população, pelo impacto da inflação especialmente nos alimentos. E, no campo da tecnologia, muitas empresas demitindo. Estamos olhando para isso com pesar porque vemos projetos promissores passando por essa dificuldade.

Ainda que os recebíveis ampliem a possibilidade de tomar crédito, esse acesso continuará mais difícil aos pequenos negócios diante da atual conjuntura macro, correto?

No caso do mercado de recebíveis, está acontecendo certo fenômeno, que é a valorização daqueles já performados. Por exemplo, uma pizzaria. O risco desse recebível é baixo, e para eles as taxas estão andando de lado. Não se repassou nem Selic, nem spread. No outro extremo está aquele empreendedor alavancado que pede três vezes seu faturamento para pagar em 12 meses. Para este, o apetite se reduziu. Afinal, com juros mais altos, quanto conseguirei reter do faturamento desse empresário? Será que ele suportaria uma retenção de 20%? Muitas vezes sequer tem essa margem de lucro. E, numa conjuntura como a atual, esse empresário tende a agir de forma particular. Começa a pedir para que o cliente faça transferência direta, pague em PIX, para que o dinheiro que entre não vá para pagar o banco. Poderia chamar isso de fraude, mas o código de ética dele nesse momento é não demitir, pagar fornecedor, sustentar a família. O banco vem depois. É uma situação difícil. Agora, nesse grupo de recebíveis de risco baixo que mencionei, o spread pode até se reduzir. Porque tem gente que precisa alocar capital, precisa colocar dinheiro para girar. E aí busca a opção menos arriscada. 

Qual a agenda da Cerc adiante?

A obrigatoriedade do registro centralizado de recebíveis permite garantir que ele existe, que não foi usado mais de uma vez, e que no momento em que virar dinheiro, chegará na mão correta. E essa lógica pode ser aplicada em vários ativos. As implementações mais próximas são do setor imobiliário, para financiamento de construção de imóveis. No Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, por exemplo, vende-se um sonho de casa própria para se financiar a construção de um prédio. Isso porque não tínhamos uma estrutura de governança adequada para proteger tanto o banco que financia a obra quanto o comprador da unidade. Então, o registro centralizado de recebível imobiliário vai servir para que todos saibam que aqueles recebíveis não são mais da incorporadora, são garantia do banco, e consigamos monitorar o desempenho do incorporador. Representantes do próprio setor foram ao BC e pediram pelo registro centralizado, como mecanismo para destravar o crédito para o setor da construção civil. A previsão é de que isso passe a acontecer em janeiro de 2023.

Logo vem o mercado de duplicatas, que é o recebível mais abundante que temos.Porque por trás de uma máquina de lavar que você compra, por exemplo, tem 50 fornecedores que emitiram duplicatas para honrar seus compromissos. Hoje ainda há risco nesse setor, o fabricante da máquina de lavar não sabe que o recebível foi negociado, não sabe a quem pagar e aí recebe notificação judicial, cinco boletos diferentes. Tem uma confusão que vamos atacar nesse processo, e cuja implementação tende a começar no segundo semestre do ano que vem. 

Temos conversado sobre todos os tipos de direito creditório que enxergamos na economia. Por exemplo, debatemos como escalar a operação do consignado, especialmente  privado. Temos quase 40 milhões de trabalhadores com carteira assinada, e menos de 10% acessam esse crédito - mas têm cheque especial, cartão no rotativo… Isso porque a operação do consignado ainda é complexa, depende de convênio do banco com o empregador, e muitas vezes não tem incentivo porque outros produtos são mais rentáveis.

A Cerc também está no processo de autorização como depositário na CVM, porque queremos aproveitar outra inovação recente, que é o certificado de recebíveis (CR, previsto na MP 1103). É uma forma de empacotar recebíveis de forma mais organizada e levar para investidor, como um institucional, um fundo multimercado. Isso traz uma perspectiva de fazer a conexão ponta a ponta. Ou seja, de tornar o crédito recebível em investimento usando esses mecanismos de secutirização aprimorados com a MP, criando também um mercado desintermediado, fazendo com que o capital do investidor alocado, mesmo sendo em fundo multimercado, em fundo de crédito privado, possa comprar certificado de recebíveis, cotas de Fdic, lastreados nesses recebíveis todos com muito menos risco. 

 

Fonte: FGV/IBRE