Joisa Dutra: O futuro nem tão incerto da transição energética

Estresse global na energia inclui Costa Oeste dos EUA e principalmente Europa, com ameaça a fornecimento no inverno. Mas transição energética veio para ficar e é hora de criar condições de investimento, e não só no setor elétrico.

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Joísa é coordenadora do Mestrado Profissionalizante em Finanças e Economia Empresarial da EPGE Escola Brasileira de Economia e Finanças (FGV EPGE) (Foto: Divulgação/FGV)

Vivemos tempos estranhos. São muitos os fatores de estresse: guerra na Ucrânia, elevação nos preços de energia e preocupações com segurança energética que substituem na agenda a urgência da descarbonização; pressões inflacionárias e seus impactos sobre pessoas e empresas, que demandam respostas e recebem atenção e geram respostas políticas, nem sempre certas; pressões nas cadeias de suprimento; tensões geopolíticas e instabilidade e transições políticas, caso da Itália e do Brasil.  

Problemas em energia aparecem também na Costa Oeste dos Estados Unidos, que tem sofrido com elevadas temperaturas em ondas de calor extremo. Para enfrentar os impactos e o estresse sobre o setor elétrico, que tem atingido recordes históricos de demanda, o governo da California tem emitido Flex-Alerts através do Office of Emergency Services (Cal OES). Os consumidores são notificados por meio de mensagens de texto pedindo que a população reduza consumo não essencial de eletricidade. Os benefícios são na conta e na segurança do fornecimento.

Mas o caso na Europa é mais urgente e sensível, com ameaças à segurança do fornecimento no inverno que se aproxima.  Foram estabelecidas metas para estocagem. Mas mesmo que tenham quase sido alcançadas, não há como antecipar se as temperaturas serão amenas para evitar problemas no fornecimento de gás. Alguns governos já estão desenhando programas para aliviar pressões de preços com redução da demanda, aumento de eficiência, restrição de consumo e mesmo racionamento para lidar com as dificuldades e/ou contingências.

No dia 09 de setembro, uma reunião de ministros europeus avaliou medidas para enfrentar os desafios no mercado de energia. As propostas incluíam conjunto de intervenções, tais como: (i) redução de consumo, principalmente no horário de pico; (ii) restrição de receitas para tecnologias inframarginais, como renováveis, que estariam lucrando (muito) com os preços muito elevados, determinados principalmente pelo gás; e (iii) contribuição “solidária” temporárias das tecnologias fósseis. As receitas obtidas com essas duas últimas propostas ajudariam a bancar medidas de alívio nas contas dos grupos mais vulneráveis da população. Também se discutem suporte a problemas de liquidez nos mercados decorrentes de preços excessivamente elevados, que podem causar defaults. Por fim, são cogitados limites aos preços do gás natural – que podem ser difíceis de implementar na prática sem causar arbitragem. A implementação não é fácil e nem simples, o que leva na prática a soluções distintas nos diferentes Estados Membros.

Esse quadro obviamente está levando muitos a dizer que a transição energética estaria indo “pro brejo”. Será? Argumento que esse não é o caso. O que escrevo a seguir são reflexões pessoais, por óbvio. Ainda que não totalmente desinformadas, seria interessante rever essa coluna em 2030.

A transição energética é um processo complexo e sem precedentes na escala e na velocidade de implementação. Muitos argumentavam que seria simples, fácil e barato. Que bastaria dizer que o custo dessa transição seria menor do que não percorrermos logo a trajetória da descarbonização. Essa não é a realidade, como atestam os eventos recentes. Estamos vivendo uma correção de rotas e uma oportunidade de ajuste de expectativas.

Vaclav Smil, autor de relevantes livros e reflexões sobre o tema, faz uma estimativa grosseira: considerando projeções da McKinsey, do ano de 2018, a transição energética custaria pouco mais de 10% do PIB mundial, ao ano, entre 2020 e 2050. Além da conta ser muito alta, e na prática impagável por muitos países, é preciso ir além.  A análise dos valores absolutos oculta tradeoffs locais e entre grupos e regiões: há ganhadores e perdedores. E em muitos casos os perdedores, ou aqueles que assim se sentem, têm grande capacidade de bloquear ou impedir mudanças, atrasando o processo.

Olhando por outro lado, os eventos recentes estão gerando efeitos concretos.  Diferentes motivações têm levado Europa, Estados Unidos e China a mobilizar esforços para inovar e investir no conjunto de tecnologias que ainda estão por serem descobertas – as quais representam cerca de 50% das necessárias para a descarbonização. E também naquelas que já conhecemos e que precisam alcançar viabilidade comercial para aumentar sua participação no mercado. Tudo isso para alterarmos significativamente o quadro de uma sociedade em que os combustíveis fósseis respondem por mais de 80% da sua energia.

Afetados por esses eventos, precisamos de respostas “fora da caixa”. Não dá para ficarmos parados, esperando o barateamento dessas tecnologias acontecer lá fora. Temos que ter espaço para inovação e experimentação – nas tecnologias, nos modelos negócios, nas políticas e na regulação. Precisamos entender o potencial e os impactos das eólicas offshore e os impactos de um mercado de carbono. Nos dois casos, Congresso e Executivo agem em paralelo, mas sem sincronia no tempo e nos temas. Geram-se assim sinais confusos para investimentos e negócios.  

O trem da transição energética já partiu. Inserido nesse processo, o Brasil conta com uma vantajosa participação das fontes renováveis na prática e mais ainda nas possibilidades. Hora de criar condições para investimentos não apenas no setor elétrico, mas nos demais que precisarão de ajuda – aqui e fora do país. Esperar reduções de custo em tecnologias e processos não vai nos garantir a vantagem relativa que precisamos. Ainda mais quando as respostas a esses fatores de estresse aceleram investimentos e inovação em tecnologias de energia limpa. A resposta dos Estados Unidos – diante das medidas de ação climática, que são parte do recém aprovado Inflation Reduction Act; da Europa, que acelera investimentos em face do imperativo da guerra e da crise energética; e da China, na busca de protagonismo mundial, recomendam agir rápido. Ao que parece, ainda vale apostar na transição energética.

 

Fonte: FGV/IBRE