Mudanças no CADE, nova legislação e inovação digital compõem agenda antitruste em 2023
No plano legislativo, a entrada em vigor da Lei 14.470/2022, publicada neste mês, que incentiva as ações de reparação de danos concorrenciais, prevê pagamento de indenização em dobro por empresas condenadas por cartel.
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). (Foto: Rudy/ Agência Senado)
A agenda antitruste em 2023 prevê mudanças na composição do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), em razão do término do mandato de quatro dos sete conselheiros.
Esse cenário de mudança indica possível alteração de entendimentos já consolidados na jurisprudência do CADE, aumentando a probabilidade de revisão de decisões e avocação pelo Tribunal de casos de controle de concentração, segundo o advogado Aurélio Marchini, sócio do escritório Marchini Botelho Caselta Advogados.
“Ainda que haja incertezas quanto aos posicionamentos da futura composição do Tribunal do Cade, em paralelo, o órgão vem adotando uma série de medidas para trazer maior previsibilidade em suas decisões, com a publicação de guias e estudos com o propósito de estabelecer diretrizes sobre temas relativos à política de defesa da concorrência”, comenta o advogado especialista do Direito Concorrencial.
Nova legislação
No plano legislativo, a entrada em vigor da Lei 14.470/2022, publicada neste mês, que incentiva as ações de reparação de danos concorrenciais, prevê pagamento de indenização em dobro por empresas condenadas por cartel, não aplicável a empresas que tenham celebrado acordo de leniência ou cessação de prática com o CADE.
Marchini frisa que o ônus da prova de eventual repasse dos prejuízos pelas vítimas do cartel ao preço de seus produtos passa a ser dos cartelistas, e que a nova lei também estabelece que o prazo prescricional de cinco anos para a propositura da ação de reparação se inicia com a ciência inequívoca do ilícito (equiparada na lei à decisão final do CADE sobre o cartel) e fica suspenso no curso da investigação pelo Conselho.
Outra iniciativa que está no radar do legislativo é o projeto de regulação das plataformas digitais no Brasil (PL 2768/22), apresentado recentemente na Câmara dos Deputados. Para Marchini, a iniciativa se liga à intensificação das discussões em plano internacional quanto à necessidade de regulação específica voltada ao mercado digital. Nos últimos anos, empresas de publicidade digital foram alvo de investigações antitruste em diversos países, o que indica que o ano de 2023 pode ser palco para novas discussões sobre a necessidade de mudanças relevantes nas regras concorrenciais e nas políticas de enforcement antitruste.
Aurélio Marchini, sócio do escritório Marchini Botelho Caselta Advogados. (Foto: Divulgação)
O cenário internacional vem tratando de temas relevantes sob a ótica antitruste, principalmente sobre a forma de lidar com os desafios impostos pela transformação digital, explica o sócio. Na visão de Aurélio, o CADE tem papel importante no quanto a esses desafios em âmbito doméstico, usando a experiência internacional como benchmarking para ditar a política de concorrência no Brasil.
‘As novas plataformas online apresentam questões que não são triviais para a análise tradicional do antitruste por suas características, como o preço zero, a coleta de dados, entre outros. Ao lado do aperfeiçoamento da metodologia de análise antitruste, começaram a surgir propostas concretas de regulação assimétrica que impõem a determinadas empresas uma série de obrigações, ainda que não seja constatada qualquer infração à ordem econômica’, declara o sócio.
Uma das propostas recém-aprovadas na União Europeia é o Digital Markets Act (DMA), que prescreve diversas obrigações aos gatekeepers. Aurélio destaca que a influência do DMA ultrapassa as fronteiras europeias e tem estimulado diversos países. Segundo ele, a própria Comissão Europeia vem incentivando as autoridades antitruste de outras jurisdições a adotarem uma postura “proativa” e, na América Latina, países como o Chile, por exemplo, tem propostas inspiradas no DMA, e resta ver como essa iniciativa será importada pelo Brasil.
Nos últimos anos, segundo Aurélio, diversas plataformas digitais passaram a oferecer soluções financeiras e de pagamentos proprietárias no bojo dos demais serviços de seu ambiente, capturando transações, credenciando estabelecimentos, oferendo conta digital e crédito para os lojistas que aderem à plataforma. Nesse sentido, o sócio relata que em outras jurisdições uma preocupação central é se plataformas digitais utilizam seu poder no segmento de origem para causar fechamento de mercado de concorrentes em mercado relacionados ou adjacentes, especialmente mediante a negativa ou limitação de acesso de soluções de pagamentos aos usuários da plataforma.
A atuação do CADE e do Banco Central na última década, de acordo com Aurélio, foi crucial para promover e garantir a concorrência do mercado de meios de pagamento físicos. Segundo ele, continuarão a ser avaliadas situações capazes de resultar no fechamento de mercado a meios de pagamento por plataformas digitais no Brasil; como o SBDC deve atuar; quais os critérios de análise e em que medida a abertura do mercado de meios de pagamento ocorrida na última década se aproxima ou distancia da estrutura de pagamentos online desenvolvida pelas plataformas digitais.
No plano internacional ainda, encontra-se em curso uma revisão sobre objetivos do direito antitruste e uma pressão por mais atuação das autoridades responsáveis por sua aplicação. O advogado avalia que essa tendência tem se manifestado em maior número de investigações não só quanto às chamadas big techs, mas também quanto a fundos de private equity e, de modo geral, a questionamentos mais abrangentes de novas operações de concentração econômica.
Cooperação ambiental
Uma frente que se tem discutido é a revisão de parâmetros para a cooperação entre concorrentes com objetivos de sustentabilidade ambiental. Os esforços para adesão às políticas globais de sustentabilidade têm crescido exponencialmente nos últimos anos. Na avaliação do sócio, a possibilidade de cooperação entre entes privados em prol dos objetivos sustentáveis – inclusive entre empresas concorrentes também tem atraído interesse no mundo dos negócios.
‘No último ano, a Comissão Europeia disponibilizou à consulta pública nova versão do seu Guia para Acordos de Cooperação Horizontais, incluindo diretrizes específicas para a análise de Sustainability Agreements e para a autoavaliação, por parte das empresas, da conformidade desses acordos com a legislação concorrencial’, comenta o sócio.
Contudo, enquanto qualquer colaboração entre entes privados – especialmente entre concorrentes – requer gerenciamento de riscos cuidadoso para evitar infrações antitruste, Aurélio diz que algumas questões-chave sobre a avaliação desses acordos ainda estão sendo enfrentadas pelas autoridades concorrenciais, tornando qualquer análise de risco desafiadora.
Contexto histórico
Nos últimos dez anos, desde a publicação da Lei 12.529/11, também conhecida como ‘Lei de Defesa da Concorrência (LDC)’, o CADE vem assumindo posição de destaque internacional. Um importante resultado do reconhecimento de sua atuação foi o ingresso do Brasil como membro permanente da comissão da OCDE, além de elogios no último peer review, destaca Aurélio.
‘A nova Lei de Defesa da Concorrência tem contribuído significativamente para promover o ambiente concorrencial no Brasil, bem como forjar uma cultura favorável à livre concorrência. No entanto, ainda resta o desafio de promover maior difusão da cultura concorrencial, com o conhecimento por parte da população dos efeitos deletérios de restrições artificiais nos mercados e das práticas abusivas’, comenta.
Ao longo da vigência da LDC, o CADE, através das esferas de atuação preventiva, repressiva e educativa, tem mostrado desempenho significativo e robusto. Nesse sentido, com relação ao controle de estruturas (atos de concentração), dispomos de uma legislação alinhada com as melhores práticas e autoridades concorrenciais do mundo, capaz de lidar com número de casos crescentes mesmo durante a pandemia da Covid-19. Após dez anos de vigência da LDC, Aurélio acredita que o Brasil já pode ser considerado uma jurisdição madura no controle prévio de concentrações, que é uma das maiores mudanças trazidas pela lei e que conferiu maior segurança jurídica e posicionou o Brasil entre os destaques internacionais na área concorrencial.
No tocante ao controle de condutas, a autoridade antitruste brasileira mantém-se focada na análise tradicional que tem o viés centrado no bem-estar do consumidor (variáveis centrais para avaliação do bem-estar dos consumidores baseada essencialmente em critérios de oferta e de preços), diferentemente dos EUA, que segue o caminho de ampla rediscussão desse paradigma.
Observa-se nos EUA o crescimento do discurso de uma política que tem como objetivo colocar o poder econômico e seus efeitos sobre a concentração de renda (leia-se, efeitos para além dos consumidores, e propriamente associados a trabalhadores, pequenos negócios, entre outros) no centro das preocupações, visando, especialmente, as empresas de tecnologia estadunidense.
Diferentemente do Brasil, que com a Lei 12.520/11 passou a concentrar a defesa da concorrência em uma única autoridade praticamente (considerando que a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) tem um papel restrito à advocacy), Aurélio comenta que nos Estados Unidos a defesa da concorrência é exercida por duas autoridades no âmbito federal. Além disso, procuradores-gerais dos estados também podem encabeçar processos antitruste, com vistas a efetuar o enforcement de leis antitruste estaduais e federais.
‘Trata-se de uma defesa da concorrência com maior envolvimento do judiciário, já que as autoridades federais e estaduais dependem, em geral, do ajuizamento de ações, buscando a responsabilização dos agentes que figuram com réus, ou a homologação de acordos celebrados com esses mesmos agentes’, destaca Aurélio.
Enquanto no Brasil o fortalecimento de ações privadas de reparação a danos de carteis apenas agora é objeto de uma nova lei que as incentivam, o antitruste norte-americano tem as ações privadas como um de seus pilares, comenta o sócio. Ele explica que, assim como no Brasil, nos Estados Unidos a prática de cartel configura crime e pode acarretar pena de prisão aos executivos envolvidos. No entanto, enquanto aqui a aplicação dessa pena é rara, nos Estados Unidos, trata-se de ferramenta dissuasória efetiva, já que há múltiplos casos em que indivíduos foram apenados com pena de prisão em virtude estritamente da prática de cartel.
Ao longo desses dez anos, apesar de ter levado o Brasil a assumir papel representativo na defesa da concorrência ao redor do mundo, Aurélio reconhece o efeito da LDC de expor algumas dificuldades enfrentadas pela autoridade no enforcement antitruste. Nesse sentido, em uma revisão sobre a política de concorrência no Brasil, conduzida em 2019, o sócio enfatiza que a OCDE reforçou, no plano institucional, a importância da separação entre o Tribunal (o órgão decisório) e a Superintendência-Geral (SG, a autoridade investigadora), a fim de garantir que o Tribunal não cumpra a função de um segundo órgão de investigação.
Em seu relatório, a OCDE também destacou o número reduzido de investigações conduzidas pela SG envolvendo abuso de posição dominante desde a nova Lei de Defesa da Concorrência e um número ainda menor de decisões por parte do Tribunal, sugerindo o estabelecimento de coordenações-gerais separadas dentro da SG para investigar este tipo de conduta. Seguindo a recomendação da OCDE, em 2022, o CADE criou uma coordenadoria dedicada à investigação e combate de casos de abuso de posição dominante.