Por que as pessoas tendem a acreditar em teorias da conspiração na era digital

Daniel Kupermann esclarece o funcionamento da psicologia das massas nesse processo, que ocorre quando existe a abolição do pensamento crítico no seio de uma grande mobilização.

 

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Especialista aponta herança ancestral de não apego à racionalidade como fundamento essencial de suas crenças.(Foto: Freepik)

Teorias conspiratórias estão longe de ser um fenômeno exclusivo do século 21 e das redes sociais. Pelo contrário, já surgiam aos montes no século 20 e em momentos anteriores. Questões como o triângulo das Bermudas e os supostos fenômenos sobrenaturais, o homem ter ou não chegado à Lua, supostos pactos entre marcas famosas como a Disney e a Coca-Cola com o diabo, entre outras teses, instigam a curiosidade e a imaginação das pessoas.

De certa forma, quando dizem respeito a temas mais sobrenaturais, curiosos, distantes do cotidiano das pessoas e de situações relevantes para a vida coletiva, as conspirações não trazem problemas maiores. O problema da alucinação coletiva reside no fanatismo, quando se toca em questões políticas, religiosas, étnicas ou raciais, que podem gerar intolerância e violência.

Crenças e Paixões

Por trás da Casa Branca e das estruturas superficiais do Estado americano, há uma instância mais profunda do comando dos Estados Unidos, o chamado Deep State, a cúpula dos verdadeiros dirigentes do país, que, escondidos do povo americano, decidem tudo sobre todos. Os membros dessa cúpula são adoradores de satanás e bebem sangue de bebês para obter sua juventude. Entre eles estão Barack Obama, Hillary Clinton, Tom Hanks, Bill Gates e George Soros.

A única figura capaz de conter tudo isso e salvar o povo é o republicano Donald Trump. Macabro, não? Por outro lado, uma fábula um tanto risonha também. Contudo, na “maior democracia do mundo”, existe um movimento, classificado pelo FBI como uma “ameaça de terrorismo doméstico”, que acredita piamente nessa história. A convicção é tamanha que chegou a levar vários apoiadores da “tese” à invasão do Capitólio, prédio que serve como centro legislativo do Estado americano, após Joe Biden, candidato do Partido Democrata, vencer as eleições em 2020.

Outros movimentos, tanto no plano internacional quanto no nacional, surgem e mobilizam comunidades enormes de pessoas. Negacionistas às questões ambientais, terraplanismo, movimentos antivacinas são alguns dos grupos que vão contra as evidências e a concretude dos fatos. Foi nesse contexto que o termo pós-verdade ganhou holofotes e vem sendo frequentemente usado nos últimos anos. O dicionário Oxford elegeu-o como a palavra do ano em 2016. Para entender melhor o comportamento desses grupos e os dispositivos psicossociais que influenciam essas pessoas, conversamos com o professor Daniel Kupermann, do Instituto de Psicologia da USP.

“Isso é um fenômeno que nós, na psicanálise, chamamos de psicologia das massas, não só na psicanálise, mas na psicologia social de um modo geral. Para Freud, um dos aspectos principais desse fenômeno é a abolição do pensamento crítico dentro de grandes massas mobilizadas. Hoje, precisamos englobar no conceito de massas as comunidades digitais, grupos de WhatsApp, redes sociais etc. Freud herda uma tradição que entende que o pensamento crítico necessita preservar uma certa individualidade e também de tempo para uma reflexão individual; então, a massa diminui o pensamento crítico, na medida em que ela nos coloca como parte de um todo maior, e, em nome desse sentimento de pertença, as pessoas tendem a aderir aos ideais do grupo independentemente de qualquer fato contrário a essa crença”, esclarece.

Aceleração do tempo

O professor destaca também o fator tempo na construção dessas convicções. O tempo é um recurso escasso, convivemos com o aceleramento das rotinas, a sobrecarga de ocupações, um enorme volume de informações que nos bombardeiam diariamente, informações circulando em questões de segundos, entre outros fatores. Para não cair da esteira das notícias, ligada em velocidade máxima, o leitor precisa correr uma maratona todos os dias. Por isso, sobram apenas alguns instantes para que realizemos a tarefa de analisar e pensar sobre as informações que estamos recebendo, o que faz com que as pessoas tendam a não checar as informações que estão consumindo e muito menos elaborar qualquer reflexão sobre aquilo.

“As pessoas recebem uma mensagem no WhatsApp, por exemplo, e elas compartilham imediatamente essa mensagem sem parar para analisar se ela é minimamente verossímil. Isso é um fenômeno supertípico do nosso tempo, então, se há uma mensagem que você acha que interessa ao grupo X, Y ou Z, você compartilha, você não checa a fonte, você sequer lê o texto inteiro”, conta.

Daniel Kupermann aponta ainda que há uma herança ancestral envolvida nessa tendência, e que, historicamente, o ser humano nunca foi apegado à racionalidade como fundamento essencial de suas crenças. “A primeira forma de crença que a humanidade adotou foi a religião. Foram as crenças religiosas, no caso, desde as religiões mais arcaicas, como o totemismo, até as religiões relidas na modernidade.

A crença religiosa, tomando ela como paradigma da crença, não exige uma fundamentação racional. Ela exige a fé, ela se baseia nessa ideia da fé e, claro, se baseia também em séculos de transmissão dessas ideias. Então, em sua origem, a crença nunca necessitou de validação científica. A ciência como guia da humanidade é um advento da modernidade”, afirma.

O que guia uma crença?

Existe, na visão do docente, uma barreira entre as pessoas e o saber científico. “Primeiro, a formação científica é uma formação hiperprivilegiada. Quem pode frequentar a universidade? Quem faz pesquisa? Claro que a mídia divulga, há um trabalho intenso de divulgação científica. Porém, isso não quer dizer que você vai sensibilizar os espíritos apenas porque você faz divulgação científica baseada em critérios de racionalidade. Como a crença se baseia originalmente em uma experiência mais afetiva, que é a fé, e menos racional, essa tensão, vamos dizer assim, entre a dimensão afetiva daquilo que se acredita, das crenças, e a dimensão racional, essa tensão sempre existe”, elucida.

Na interpretação de Kupermann, a racionalidade e as evidências científicas não foram, em nenhuma época, de interesse central das pessoas para determinar suas opiniões e perspectivas de mundo. “Eu posso dizer o seguinte: vivemos em uma era de pós-verdade, porque a verdade não mais prevalece, como se um dia ela houvesse prevalecido. Eu considero essa visão ingênua e proponho o seguinte: a verdade é determinada a posteriori, quer dizer, não é mais determinada por princípios que o sujeito detém, por exemplo, a racionalidade científica, e sim pelos interesses afetivos, na maior parte das vezes até inconscientes, que aquela informação traz para o sujeito”, coloca.

Tempos de crise

Em tempos de crise, esses comportamentos tendem a aflorar em diversos setores da sociedade. A fragilidade de populações expostas a perigos iminentes como a fome, doenças, déficits habitacionais e aumentos da violência criam um campo fértil para discursos e lideranças extremistas.

“São líderes que falam para os corações, não para as mentes, eles exploram as afetividades e a dimensão do desamparo dessas populações.” Essas populações sofrem um processo psíquico chamado pela psicanálise de “regressão”, um mecanismo de defesa que leva à reversão temporária ou de longo prazo do ego para um estágio anterior de desenvolvimento.

“É como se elas se infantilizassem. E esses líderes populistas falam para esses sujeitos infantilizados psiquicamente. É mais fácil provocar uma adesão em massa a essas ideias quando os sujeitos estão nessa situação de regressão. Eles apostam na regressão das subjetividades e nos processos psíquicos que vigoram, como a recusa da realidade”, desenvolve.

Ao encarar uma situação adversa ameaçadora, os indivíduos em situação vulnerável tendem a recusar a realidade e a procurar subterfúgios que os protejam psicologicamente da realidade. “Nós tendemos a nos defender, uma das formas de se defender é recusar uma parte da realidade em detrimento de outra. Traduzindo isso para uma linguagem bem simples: você está ameaçado por um vírus que provocou uma pandemia.

Todos vivendo uma enorme incerteza, não podendo andar na rua, sem ver seus entes queridos, tremendo pela própria vida, economicamente uma situação completamente instável. Vem um líder e diz: eu sei de onde vem esse vírus, eu sei quem provocou esse vírus, e começa a trabalhar com a recusa. De um lado, ele diz que o problema não é tão perigoso, de outro lado, ele diz que tem a cura, um remédio que não tem nenhuma fundamentação científica.

E no Brasil, então, aconteceu um fenômeno incrível, que foi o apoio de grande parte da comunidade médica a uma medicação que não tinha comprovação científica nenhuma. Mais além, continuaram a defender isso mesmo após as evidências científicas indicarem que certas medicações não tinham efeito positivo algum, como é o caso da cloroquina. Quando nós estamos vulneráveis e alguém apresenta uma solução, você entende que, do ponto de vista psíquico, é mais fácil acreditar nisso do que ficar na incerteza”, finaliza.